A caminho de Portugal. Definitivamente.
Depois de mais de um ano de trabalho no magrebe africano, o que pensar? Não sei, para ser sincero. Mas tento explicar o que sinto.
A experiência que tenho passado por cá é provavelmente, e a seguir ao meu épico nascimento, a maior prova de resistência e dureza que alguma vez passei. A vantagem da mais antiga é não me lembrar. A vantagem desta última é não me esquecer.
Como descrever este ano em Marrocos? Por partes. É como um degrau. Muito grande. No início não era capaz de lhe ver o fim. Faltavam-me olhos que vissem tão longe. Acredito que possa ter sido a minha sorte, quando não se sabe o que falta, não se sabe o que se tem pela frente. Não há ansiedade, não se sofre por antecipação. Crédito de ingenuidade serviu para pagar a factura de falta de experiência. Estou cá, estou no fim e estou vivo. Resultou.
A pergunta que se impõe é, como foi possível resultar? Tem truque. As pessoas que nos rodeiam. Um conjunto de seres humanos que ao meu lado enfrentaram as adversidades que uma vida por cá implica, com dedicação e empenho, com respeito e orgulho. Há espírito de missão. Tem de haver, basta passar cá 15 dias para perceber. A força invisível que todos os dias passamos uns aos outros através de camaradagem, ajuda ou simplesmente presença. Difícil aqui não é trabalhar, foi para isso que todos nós viemos e apenas está limitado pela garra de cada um. Como é natural, há momentos de maior e menor força. Fases de maior ou menor motivação. Há frescura e cansaço. A única coisa que não há é a mínima dúvida que toda a gente vai até onde pode. A maior parte das vezes um pouco mais além. O que realmente custa por cá é o isolamento a que o local nos sujeita. Não ter um sítio para jantar fora e descomprimir, uma esplanada para se beber um copo, ouvir uma música. Não haver cinema. Não ver umas caras novas. É aí que se vacila, que se pensa em Portugal. É nessas alturas em que se pensa como esta vida é dura. É também quando se joga o trunfo que há pouco descrevi, as pessoas que nos rodeiam.
Não são precisos nomes.
Tenho um quase-irmão, um amigo de infância que comigo tem partilhado as agruras e as vitórias desta empreitada. Não sei se sem ele teria sido possível esta aventura da minha parte. Nunca o saberei. Quero acreditar que sim. Sei apenas a importância que sempre teve ao longo da minha vida. Inigualável. Quando se pode contar com um amigo assim, tudo fica fácil. Um senhor.
Dois super directores de projecto. Na hora da partida não corro o risco de parecer mal, embora me parece que nunca o correria, dado que expresso apenas o evidente. De entrega ilimitada, conselheiros, rigorosos, implacáveis, confidentes, defensores da sua equipa. Exemplo e líderança. Dois amigos.
O que dizer também da camaradagem que senti ao longo deste ano não só deles mas também de toda a equipa de génios que desde o gabinete técnico, às terraplenagens, obras de arte, pavimentos, túnel, topografia, equipamento e compras, me acompanharam de mangas arregaçadas nas mais diversas façanhas? Muito trabalho, sem nunca deixarem de existir as almoçaradas, os lanches, as corridas, as futeboladas e os jantares. Alguém se vai esquecer das sessões míticas da Maison 5, da casa das Obras de Arte ou da casa do Túnel? As histórias? As peripécias contadas e discutidas nos dias seguintes? Será possível alguma vez esquecer-me da noite épica em que 17 pessoas sempre em festa, arrancaram do estaleiro e invadiram Marrakech? Seguro que não. Foi com eles que descobri o quão importante é espairecer ao Sábado e Domingo para Agadir, Marrakech e Essaouira. Foi com eles que fiz snowboard no Atlas, vi Laurent Wolf e Martin Solveig ao vivo, andei de skate por Agadir, fui ao festival Gnaoua, fiz surf na Roche du Diable. Até uma simples ida a Imintanoute para beber um café transforma-se quase sempre num momento de boa-disposição com aquela realidade (inevitavelmente) tão estranha para nós. A isto chamo união.
Neste verdadeiro 'playground' de emoções também há um sentido quase maternal, muito por culpa de duas excelentíssimas senhoras. Duas verdadeiras mulheres de armas que conferem um forte equilíbrio neste mundo iminentemente masculino (com rara excepção dos betuminosos onde claramente existe outra verdadeira padeira de Aljubarrota, a nível de força anímica e garra). A atenção e preocupação concedidos sempre que o sexto-sentido era activado e se percebia que alguém poderia estar 'ligeiramente' menos bem disposto, ajudaram-me de forma decisiva. Inesquecível mesmo foi a minha chegada em que a primeira frase que ouço no estaleiro é "você é o Joaquim? Venha ao meu escritório e ligue já para casa a dizer que chegou bem!". Meus caros, isto é muito importante. Faz-nos sentir em casa.
Costuma-se dizer que depois do regresso e com o passar do tempo temos tendência para esquecer as recordações menos boas sobrando mais espaço para as melhores. Estou céptico. Não sei se algum dia terei saudades da vida em Imintanoute. Uma certeza, vou ter (já tenho) saudades destas pessoas.
Para a história fica um troço de 13,2 km de auto-estrada em pleno Atlas. São dois viadutos a 50 metros de altura com 440 + 160 m de comprimento, 44 passagens hidráulicas, 2 passagens superiores, 2 550 000 m3 de aterro, 5 000 000 m3 de escavação, um túnel duplo com 550 m de comprimento e por fim 150 000 ton de betuminosos. No futuro serão 10 minutos de auto-estrada que muitos atravessarão sem imaginar o sacrifício de todos os que me rodeiam.
O meu pequeno contributo começou com 4 meses onde trabalhei como adjunto da direcção das Obras de Arte, em plena frente de obra (não, não se executam estátuas ou pinturas, são estruturas), e depois como responsável no Planeamento e Controlo da empreitada. Em Janeiro deram-me asas para voar, com a minha passagem para o Gabinete Técnico que tive o prazer de liderar durante os 8 meses seguintes. Esforcei-me por responder o melhor possível aos desafios da obra com projectos, ideias, soluções, uma ou outra medição, uma boa conversa e o tudo o que estivesse ao meu alcance. Lidei diariamente com o dono-de-obra em reuniões, petiscos teóricos, quimeras e discussões técnicas infindáveis. Fui projectista.
Confirmei aquilo em que acreditei ao longo deste ano. Saio de Marrocos mais forte para a vida. Profissionalmente, indubitavelmente mais experiente. Estive um ano numa verdadeira escola. Pessoalmente, é ainda cedo para avaliar por completo todo o ganho. Sinto-me apenas melhor. Capaz. Também perdi, com a minha ausência acabei por de alguma forma falhar às pessoas que deixei em Portugal. Pelo meio conheci-me. Senti limites, estreitei relações, baixei defesas. Rezei e rezaram por mim, senti a Sua força. Descobri falhas e virtudes, defeitos e qualidades. Ganhei marcas. Sofri com saudades. Cresci e envelheci.
Preparo-me para o próximo projecto. Não se pára, não se pode.
Há vontade e há força. Muita motivação.
Quero começar o mais depressa possível. É já na próxima semana.
Faço deste o meu último artigo no blog. Sei que este estará muitíssimo bem entregue às mãos dum senhor que prosseguirá a aventura por mais uns meses. Se ele cumprir a promessa de escrita, eu prometo ser um leitor assíduo e um comentador implacável.
Agradeço muito sinceramente a atenção que me dispensaram. Agradeço os comentários, as ideias e todo o apoio que muitas vezes senti dentro e (sobretudo) fora da blogosfera (palavra muito em voga). Agradeço-vos a companhia.
Um grande, grande, grande Abraço
Joaquim Salazar Braga
Depois de mais de um ano de trabalho no magrebe africano, o que pensar? Não sei, para ser sincero. Mas tento explicar o que sinto.
A experiência que tenho passado por cá é provavelmente, e a seguir ao meu épico nascimento, a maior prova de resistência e dureza que alguma vez passei. A vantagem da mais antiga é não me lembrar. A vantagem desta última é não me esquecer.
Como descrever este ano em Marrocos? Por partes. É como um degrau. Muito grande. No início não era capaz de lhe ver o fim. Faltavam-me olhos que vissem tão longe. Acredito que possa ter sido a minha sorte, quando não se sabe o que falta, não se sabe o que se tem pela frente. Não há ansiedade, não se sofre por antecipação. Crédito de ingenuidade serviu para pagar a factura de falta de experiência. Estou cá, estou no fim e estou vivo. Resultou.
A pergunta que se impõe é, como foi possível resultar? Tem truque. As pessoas que nos rodeiam. Um conjunto de seres humanos que ao meu lado enfrentaram as adversidades que uma vida por cá implica, com dedicação e empenho, com respeito e orgulho. Há espírito de missão. Tem de haver, basta passar cá 15 dias para perceber. A força invisível que todos os dias passamos uns aos outros através de camaradagem, ajuda ou simplesmente presença. Difícil aqui não é trabalhar, foi para isso que todos nós viemos e apenas está limitado pela garra de cada um. Como é natural, há momentos de maior e menor força. Fases de maior ou menor motivação. Há frescura e cansaço. A única coisa que não há é a mínima dúvida que toda a gente vai até onde pode. A maior parte das vezes um pouco mais além. O que realmente custa por cá é o isolamento a que o local nos sujeita. Não ter um sítio para jantar fora e descomprimir, uma esplanada para se beber um copo, ouvir uma música. Não haver cinema. Não ver umas caras novas. É aí que se vacila, que se pensa em Portugal. É nessas alturas em que se pensa como esta vida é dura. É também quando se joga o trunfo que há pouco descrevi, as pessoas que nos rodeiam.
Não são precisos nomes.
Tenho um quase-irmão, um amigo de infância que comigo tem partilhado as agruras e as vitórias desta empreitada. Não sei se sem ele teria sido possível esta aventura da minha parte. Nunca o saberei. Quero acreditar que sim. Sei apenas a importância que sempre teve ao longo da minha vida. Inigualável. Quando se pode contar com um amigo assim, tudo fica fácil. Um senhor.
Dois super directores de projecto. Na hora da partida não corro o risco de parecer mal, embora me parece que nunca o correria, dado que expresso apenas o evidente. De entrega ilimitada, conselheiros, rigorosos, implacáveis, confidentes, defensores da sua equipa. Exemplo e líderança. Dois amigos.
O que dizer também da camaradagem que senti ao longo deste ano não só deles mas também de toda a equipa de génios que desde o gabinete técnico, às terraplenagens, obras de arte, pavimentos, túnel, topografia, equipamento e compras, me acompanharam de mangas arregaçadas nas mais diversas façanhas? Muito trabalho, sem nunca deixarem de existir as almoçaradas, os lanches, as corridas, as futeboladas e os jantares. Alguém se vai esquecer das sessões míticas da Maison 5, da casa das Obras de Arte ou da casa do Túnel? As histórias? As peripécias contadas e discutidas nos dias seguintes? Será possível alguma vez esquecer-me da noite épica em que 17 pessoas sempre em festa, arrancaram do estaleiro e invadiram Marrakech? Seguro que não. Foi com eles que descobri o quão importante é espairecer ao Sábado e Domingo para Agadir, Marrakech e Essaouira. Foi com eles que fiz snowboard no Atlas, vi Laurent Wolf e Martin Solveig ao vivo, andei de skate por Agadir, fui ao festival Gnaoua, fiz surf na Roche du Diable. Até uma simples ida a Imintanoute para beber um café transforma-se quase sempre num momento de boa-disposição com aquela realidade (inevitavelmente) tão estranha para nós. A isto chamo união.
Neste verdadeiro 'playground' de emoções também há um sentido quase maternal, muito por culpa de duas excelentíssimas senhoras. Duas verdadeiras mulheres de armas que conferem um forte equilíbrio neste mundo iminentemente masculino (com rara excepção dos betuminosos onde claramente existe outra verdadeira padeira de Aljubarrota, a nível de força anímica e garra). A atenção e preocupação concedidos sempre que o sexto-sentido era activado e se percebia que alguém poderia estar 'ligeiramente' menos bem disposto, ajudaram-me de forma decisiva. Inesquecível mesmo foi a minha chegada em que a primeira frase que ouço no estaleiro é "você é o Joaquim? Venha ao meu escritório e ligue já para casa a dizer que chegou bem!". Meus caros, isto é muito importante. Faz-nos sentir em casa.
Costuma-se dizer que depois do regresso e com o passar do tempo temos tendência para esquecer as recordações menos boas sobrando mais espaço para as melhores. Estou céptico. Não sei se algum dia terei saudades da vida em Imintanoute. Uma certeza, vou ter (já tenho) saudades destas pessoas.
Para a história fica um troço de 13,2 km de auto-estrada em pleno Atlas. São dois viadutos a 50 metros de altura com 440 + 160 m de comprimento, 44 passagens hidráulicas, 2 passagens superiores, 2 550 000 m3 de aterro, 5 000 000 m3 de escavação, um túnel duplo com 550 m de comprimento e por fim 150 000 ton de betuminosos. No futuro serão 10 minutos de auto-estrada que muitos atravessarão sem imaginar o sacrifício de todos os que me rodeiam.
O meu pequeno contributo começou com 4 meses onde trabalhei como adjunto da direcção das Obras de Arte, em plena frente de obra (não, não se executam estátuas ou pinturas, são estruturas), e depois como responsável no Planeamento e Controlo da empreitada. Em Janeiro deram-me asas para voar, com a minha passagem para o Gabinete Técnico que tive o prazer de liderar durante os 8 meses seguintes. Esforcei-me por responder o melhor possível aos desafios da obra com projectos, ideias, soluções, uma ou outra medição, uma boa conversa e o tudo o que estivesse ao meu alcance. Lidei diariamente com o dono-de-obra em reuniões, petiscos teóricos, quimeras e discussões técnicas infindáveis. Fui projectista.
Confirmei aquilo em que acreditei ao longo deste ano. Saio de Marrocos mais forte para a vida. Profissionalmente, indubitavelmente mais experiente. Estive um ano numa verdadeira escola. Pessoalmente, é ainda cedo para avaliar por completo todo o ganho. Sinto-me apenas melhor. Capaz. Também perdi, com a minha ausência acabei por de alguma forma falhar às pessoas que deixei em Portugal. Pelo meio conheci-me. Senti limites, estreitei relações, baixei defesas. Rezei e rezaram por mim, senti a Sua força. Descobri falhas e virtudes, defeitos e qualidades. Ganhei marcas. Sofri com saudades. Cresci e envelheci.
Preparo-me para o próximo projecto. Não se pára, não se pode.
Há vontade e há força. Muita motivação.
Quero começar o mais depressa possível. É já na próxima semana.
Faço deste o meu último artigo no blog. Sei que este estará muitíssimo bem entregue às mãos dum senhor que prosseguirá a aventura por mais uns meses. Se ele cumprir a promessa de escrita, eu prometo ser um leitor assíduo e um comentador implacável.
Agradeço muito sinceramente a atenção que me dispensaram. Agradeço os comentários, as ideias e todo o apoio que muitas vezes senti dentro e (sobretudo) fora da blogosfera (palavra muito em voga). Agradeço-vos a companhia.
Um grande, grande, grande Abraço
Joaquim Salazar Braga